ESCULTURA DA DIVERSIDADE: UM PROCESSO ARTÍSTICO COLABORATIVO NO CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS II) - TEXTO DE FERNANDA RODRIGUES VIEIRA

APRESENTAÇÃO 

Este processo ocorreu no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) de Salto de Pirapora, município do interior de São Paulo, local em que atuo como terapeuta ocupacional. O público alvo são pessoas a partir de 18 anos de idade, com sofrimento mental decorrentes de transtornos psíquicos/psiquiátricos e/ou do uso abusivo de drogas. Incluem-se pessoas egressas de longa internação psiquiátrica, que são acompanhadas pelo serviço e que atualmente moram com seus familiares ou em residências terapêuticas.
Este serviço é um dispositivo do Sistema Único de Saúde (SUS) e representa um avanço nas práticas de atenção à pessoa com sofrimento mental, pois atua de forma territorial e integrada aos diversos equipamentos do município, tendo como premissa teórico-prática a concepção da complexidade do ser humano biopsicossocial.  
Neste contexto, relatarei brevemente como foi o processo de realização deste trabalho, que resultou, mais que na construção de uma escultura, em reflexão, diálogo e interação entre o público atendido no CAPS e a comunidade, além de nos fazer projetar caminhos futuros para intervenções urbanas que colaborem para tratar de temas como  preconceito, estigma e inclusão social, sempre relacionados à “loucura”.

O PROCESSO

Este trabalho foi desenvolvido sob minha coordenação, em um grupo aberto (com auxílio de um técnico em enfermagem, que acompanha os grupos por conta da quantidade de pessoas que participam a cada encontro) e que acontece semanalmente, com duração de 2 horas, aproximadamente. Participam em média 10 pessoas a cada encontro. Há aqueles que vêm semanalmente e outros que participam esporadicamente. Mas a característica principal deste grupo é a constância, mesmo que de forma alternada, na participação.
Neste caso, o grupo acontece no CAPS II e o fato de ser “aberto” significa que qualquer pessoa pode participar, basta demonstrar interesse e desejo. Além disso, é “aberto” no sentido da escolha de cada pessoa do que será desenvolvido, de forma individual ou coletiva, adequando-se apenas à linguagem que é pré-determinada para cada grupo. Há alguns outros grupos abertos, cada um priorizando uma linguagem específica: música, dança/expressão corporal, artes plásticas, entre outros. O grupo em questão, é um grupo aberto de artes.
Materiais diversos como tintas, tecido, madeira, papel, estão à disposição, para aqueles que desejam realizar alguma proposta individual, porém sempre há uma proposta de trabalho a ser realizada de forma coletiva. Ela também está aberta às propostas e caminhos que forem surgindo ao longo de sua realização. A proposta inicial, trazida por mim, foi desenvolver em grupo uma escultura.
Nunca sei, e nem desejo saber, no que a proposta inicial vai se transformar, pois o grupo realiza intervenções o tempo todo. Cabe àquele que conduz o processo estar atento ao material bruto trazido e devolver ao grupo o que observou. A proposta inicial vai sendo modificada e isso é um processo muito potente. Neste caso, o grupo sinalizou que diversas pessoas gostariam de ter “partes” de si na escultura, o que gerou a reflexão de que talvez ficasse “estranho”, “feio” ter partes tão diferentes unidas. A grande questão acabou sendo como formar uma “unidade” com partes diferentes, desconectadas e que agradasse a todos.
O tema “diversidade” surge deste impasse e com ele começamos a trabalhar e desenvolver as etapas seguintes do processo. Ou seja, um tema/proposta inicial  transforma-se em um projeto coletivo, que nunca se fecha, que está sempre permeável a novas propostas e intervenções.
O planejamento (ideias, pesquisa, solicitação de materiais para a compra, discussão com grupo) aconteceu ao longo de 1 ano e a execução aconteceu num período de 3 meses. A escultura foi feita a partir dos corpos dos participantes, que serviram como molde. O material utilizado foi tala gessada, massa de cimento, cola, jornal e giz pastel. A cada encontro estabelecíamos as tarefas do dia e dividíamos esta tarefas entre o grupo, de acordo com o desejo de cada um.
Realizamos a primeira apresentação da escultura para a comunidade no dia 06 de outubro de 2018, na 1ª Feira Comunitária de Artes realizada no município. A proposta é realizar intervenções urbanas com esta escultura  no próximo ano e disseminar a discussão sobre diversidade, iniciada  no grupo, para além dos muros do CAPS.

CONSIDERAÇÕES

A participação das pessoas tem sido muito efetiva nesta proposta de trabalho. Surpreendo-me diversas vezes com as ideias, maneiras de fazer, articular e organizar as tarefas do processo, realizadas por cada participante. Em uma microesfera, observei ganhos em diversos aspectos: engajamento, autonomia, comunicação, interação e cognição. Em uma macroesfera, analiso como resultado o aumento da visibilidade do CAPS e das pessoas com sofrimento mental no município, bem como o combate ao preconceito e estigma da “loucura”,  ao aproximar as pessoas para o diálogo e reflexão.
Avalio que o caminho da arte, realizada de forma coletiva e articulada com a comunidade, é o caminho mais efetivo e potente para pensar saúde mental de forma política, ética e emancipatória, que reverbere não somente nas pessoas atendidas no serviço, mas em toda a comunidade do entorno.

Escultura:
Rosto- Luiz; orelha direita- José H; orelha esquerda- Anderson; tronco-Ildes; braços-Madalena; coxa-Orlando; pernas e pés- Anderson.
Participantes: Luiz, Carlos, Fernanda, Silmara, Ivani, José H, Madalena, Jonathan, Fernando Carlos, Lívia, Sandra, Fernanda Ap., Almelinda, Solange, Orlando, José Carlos, Anderson, Celso, Ildes, Ivani, Ana Lúcia.


Por Fernanda Rodrigues Vieira, Outubro/2018.
Terapeuta Ocupacional e Coordenadora do Projeto Escultura da Diversidade
Email:Fernanda.rvieira@yahoo.com.br






ESCULTURA DA DIVERSIDADE E PROJETO TOQUE: REVERBERAÇÕES

Texto de  HÉLIO SCHONMANN
Idealizador e produtor - Projeto TOQUE


Conheci Fernanda Rodrigues Vieira num dos encontros promovidos por Lilian Amaral no Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, por ocasião da mostra Mais Que Humanos. Arte No Juquery, em 2016 - exposição na qual a instalação de autoria compartilhada  TOQUE participava (veja projeto-toque.blogspot.com). Ela mostrou-se interessada em realizar os módulos de TOQUE (autorretratos em relevo) com seus atendidos, no CAPS II de Salto de Pirapora. Orientei, numa primeira etapa, a elaboração de seu próprio autorretrato. Feito isso, forneci os suportes para realização dos relevos. Os trabalhos foram  finalizados gradualmente, nos meses posteriores.

Fernanda teve um  cuidado muito específico, ao trazer de Salto de Pirapora esses novos coautores da instalação, para verem/tocarem/sentirem a obra, montada em São Paulo. Meses depois, enviou mais alguns novos coautores ao Museu da Cidade de Salto, em visita à segunda  montagem de TOQUE, na qual eles participavam.

Chamou-me a atenção não só a sensibilidade de Fernanda, mas  esse zelo  com  seu grupo de atendidos. Penso que ela compreendeu bem o sentido da coautoria proposta pelo projeto TOQUE: um processo que só acontece de forma plena quando o coautor  entra em contato com  o conjunto da obra colaborativa, sentindo seu autorretrato ladeado por centenas de outros. Esse é o momento em que se estabelecem as pontes - que eu chamaria poéticas - entre expressão  individual e o coletivo.

Recentemente, tive a grata surpresa de receber um e-mail de Fernanda,  relatando a realização de um novo e singular projeto artístico colaborativo, desenvolvido no contexto de seu trabalho como terapeuta ocupacional. Comentava que sua iniciativa era também fruto da “reverberação” que a experiência de TOQUE tinha tido nela. Para mim foi  muito gratificante esse retorno, ainda mais porque o trabalho  realizado  mostrou-se bem diverso de TOQUE.

O processo que idealizei tem como objetivo não só produzir  a instalação em processo, mas também reverberar, estimulando novas iniciativas. No caso de Fernanda, esse objetivo vem se realizando de forma muito potente. Ela explora com inteligência a soma/fusão entre seu trabalho terapêutico e a vivência colaborativa no campo  plástico/poético. Reafirma, assim, a fecundidade do fazer artístico, muito além de teorias e formalismos: a arte como interlocutora da vida -  seus dramas, suas mazelas, sua grandeza.





IMAGENS - ESCULTURA DA DIVERSIDADE