A xilogravura de Francisco Maringelli - texto de Luiz Armando Bagolin

OLHO NO ESCOLHO

Diferentemente da série, gravada em 2009, intitulada “Entre o Fio da Navalha e o Meio-fio da Calçada”, as imagens que compõem a presente exposição e o álbum gráfico de Francisco Maringelli insistem em protagonizar a cena, desalojando quase sempre a figura, costumeira em sua obra, do passante, do homem-cartaz, do mendigo, dele próprio, relegando-a ao canto, à sarjeta, à sombra, ao escolho. Encenam alguns lugares da cidade de São Paulo, arruinados, em seu estado atual, tais como o largo da Batata, o Bom Retiro, a baixa Augusta e a Brigadeiro Luiz Antonio que, eleitos à bola da vez da especulação imobiliária, expulsa os seus velhos habitantes e hábitos, eufórica pela implantação de novos. Cheirosos estes, bem mais, higienizam-se por detrás de vitrines lustrosas que guardam uma distância segura das caçambas de lixo, estas malcheirosas, onde velhos manequins, bonecos e bonecas aos pedaços despedem-se, desprezados.
Em “No Olho da Rua”, Maringelli elege trechos destes lugares, alçando-os à posição de locutores. Como num apólogo, as esquinas falam através de placas, inscrições em paredes e muros, evocando o diálogo há muito perdido para a violência do capital. Invocam as imagens o destinatário das gravuras no alarde Olhe! Genius Loci Relegado a Locatário de um Monturo, pois embora ainda eloquente, muito mais loquaz é o capital, o único mandatário. Sem mais Manda-Chuva, o malandro gato do desenho de nosso tempo, que vivia “na boa” numa lata de lixo, quem manda hoje é o Mandarim que, falando em inglês, escraviza seus semelhantes empoados nos fundos das lojas, na clandestinidade do reverso da vitrine.
Há Vagas Ilimitadas no Bom Retiro, com Direito ao Chá da Meia-noite, anuncia a garota, que a gravura só faz amplificar. Mas, jogado aos seus pés, o beco imundo e prenhe de carquilhas, afronta as noivas embelezadas para o fatídico dia, em maio de abate; indiferentes àquelas, pois inverossímeis para o atacado, as que se produzem em lascas arrancadas com as goivas cortantes, as sublimam, elevando-as, no papel arroz, do piso traçado por ratos e outros nojos em horas impróprias para as belezuras.
Transitam, outras vezes, as preciosas empertigadas atrás de rendilhas, paetês e lantejoulas sobre o solo encoberto, todavia sedimentado com centenas de tumbas indígenas esquecidas das cidades sob a cidade. O cultivo hoje, bem o sabe Maringelli, é o da grana, que torna a tudo bonito, mesmo os deploráveis signos deixados pelas reformas urbanas, cujos interesses urubuzam as hostes de pobres que bem poderiam ser empurradas para dentro do rio podre, como a ratada no conto do flautista. Por isso, a placa da Cardeal se põe em defesa do que se amontoa atrás dela, solicitando o recuo das tropas açoitadas diante do aberto da rua, reasfaltada às pressas por políticos cinocéfalos: Aos Antigos Moradores, as Batatas Podres é ato, pois, a um só tempo gráfico e político, à medida que denuncia a diáspora imobiliária em curso na região do baixo de Pinheiros.
Vagando sem norte o pouco que sobrou por estes lugares, rareiam gradualmente os índices de outrora, convertidos socialmente em intrusos abstrusos de futuro, para eles, porquanto, não planejado. Refugiam-se também na Augusta, baixa, em casarão cujo térreo em arcos como se move na gravura. Capta-o em nesgas diversas de brancos como sulcos gravados, ora sendo luzes, ora formas a descrever a iconografia incrustada naquele lugar, o olhar de Maringelli, que, em vista da perspectiva do rápido desaparecimento desses seres, promove, célere, uma limpeza generalizada no que concerne ao seu inventário de efeitos gráficos. Tal economia, consoante ao ato, explicita a narrativa pela imagem no epos, pois se trata de uma luta heroica na qual o herói, infelizmente, já está morto. Os cinos políticos também olharão para aqueles que restaram e talvez até lhes ergam cinicamente um memorial da resistência, feito de pedras, ossos e adubo humano. E, nesta ocasião, talvez riam com o riso travado de morte da caveira de Dura-Europos, que dura, acenando e dizendo: bye, bye, Dubai, bye, bye.

Texto de apresentação da exposição "No Olho da Rua", Galeria Gravura Brasileira, São Paulo, 2010



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