Um texto de Cláudio Mubarac sobre a obra de Camilo Thomé

SÃO PAULO - PASSAGENS

Walter Benjamin refere-se a Paris como uma cidade escrita. Pode-se percorrê-la e buscar em seus capítulos um mapa dentro do mapa. A cidade se dá aos olhos, e a todos os sentidos, como pura fruição, mesmo que misteriosa.
São Paulo, não. Cidade-esboço, sem descartar o mistério, sempre reconquistada e perdida, não se concretiza à nossa frente. Como se pudesse existir uma argamassa de vapor a construí-la, densa e frágil, que ao ser observada já se desfaz. Grande Esfinge abaixo do Equador.
As xilogravuras de Camilo Thomé, me parece, enfrentam este olhar oblíquo. Mesmo que bem talhadas, recusam a impressão habitual e buscam um modo mais bruto,paradoxalmente evanescente, de se apresentar. São de uma solidez inconclusa. Paisagem sem horizonte, que de tantos não o tem,são a visão do andarilho perplexo e fascinado pelos espaços quase inapreensíveis. No Planalto de Piratininga toda a cartografia é inútil.

Paris, primavera de 1999


Veja abaixo xilogravuras de Camilo Thomé

SÃO PAULO NA VISÃO DE NELSON SCRENCI

PAISAGENS DE METRÓPOLES EM CONSTRUÇÃO

A cidade possui a imagem da inquietação, dos movimentos incessantes, dos ruídos, das fumaças, das luzes que nunca se apagam. É o cenário do grandioso, do excessivo, das mudanças abruptas, da pressa, da indiferença e da solidão. Território das multidões anônimas, dos indivíduos sem rosto, é o ponto de convergência das aspirações pessoais e dos sonhos coletivos. Nela, a aglomeração humana desenha construções em sobreposição, acumulando casas sobre casas, como se todos quisessem morar num mesmo minúsculo terreno. Ela cresce para cima e para baixo. À sua volta parece devorar as pequenas vilas, transformando-as em bairros imensos, desordenados e caóticos.

É possível retratar as metrópoles de diversas maneiras. Quando se pensa nelas, a imagem mais recorrente é a panorâmica, que incorpora no horizonte um conglomerado indistinto de prédios enfileirados. Esses perfis longínquos, recortados num céu límpido, pertencem mais ao domínio da criação artística do que propriamente da observação. São raras as vezes em que podem ser vistos, de fato, nesse ajuntamento, pois para tanto é preciso afastar-se consideravelmente. E também é difícil visualizá-los em condições de iluminação e nitidez tão perfeitas quanto as que aparecem nas fotos. Estão parcialmente cobertos pelo ar difuso da poluição. Da mesma forma, quando vista numa dimensão topográfica, a cidade fica poeticamente alterada, quase irreconhecível. A noção de perspectiva desaparece e equaliza as grandezas de prédios, ruas e avenidas num só plano, transformando-os numa trama, num tecido.

Representações da paisagem urbana em toda a sua extensão, embora muito atraentes por sua abrangente plasticidade, nem sempre são o melhor meio para traduzir a vida dinâmica que ali se desenvolve. É provável que os detalhes relacionados à vida dos habitantes nem sejam notados, pois ficam muito reduzidos na amplidão. Para esse caso, resultados mais eficazes são conseguidos com a inversão do enfoque, que em sentido contrário vai observar o assunto a partir de suas singularidades, para depois atingir o todo. É quando o lado mais característico do motivo pode ser mais representativo do que sua visualização integral.

Uma incursão pelas ruas de qualquer cidade instiga a imaginação de quem se dispõe à investigação estética. Os estímulos sensoriais são tantos que dificultam a escolha de um único tema a ser trabalhado. As sugestões estão por toda parte. Nos desenhos concretistas das calçadas, nas inscrições e grafismos dos muros, nos arabescos dos cartazes, nas espirais que saem das chaminés, nas cores das vitrines, dos sinais de trânsito. Muitas dessas visões, fragmentárias e transitórias, oferecem-se como sínteses do cotidiano.Cabe ao olhar atento e criterioso escolher as mais significativas. E mais tarde, no ateliê,converter pedaços de realidade em obras de arte.

As pinturas que reúnem várias fachadas de construções num só quadro não escondem a intenção de realizar composições que procuram a harmonia na proporcionalidade de seus componentes.As figuras aparecem numa situação mais apropriada à observação. Não tão próximas, a ponto de distrair o olhar que assim iria fixar-se demasiadamente nos detalhes. Nem tão distantes,para que esses pormenores possam ser vistos. Numa outra condição de ambigüidade,situada nos limites da abstração, as linhas verticais dos edifícios dialogam com as diagonais produzidas por suas sombras, formando geometrismos, texturas, indicações de
volumes.

Nas cenas inspiradas nas periferias as casinhas, muito próximas umas das outras, são como módulos que, ritmados em formas simples, dividem um espaço de ninguém. Elas são incompletas por se encontrarem permanentemente em construção. E, por serem representações poéticas, o lado trágico e violento vivido por seus habitantes tão sofridos comparece de forma sutil. Está implícito nas combinações das cores que tentam ser alegres e nas formas improvisadas que refletem a sua luta pela sobrevivência. Ironicamente na cidade que seus ancestrais, em tempos remotos, pensavam ser o tão sonhado eldorado.


VEJA ABAIXO ALGUMAS PINTURAS DE NELSON SCRENCI

Centros da cidade

As cores da cidade

Luz e sombra

Paulista