STREET ART SEM FRONTEIRAS: lambe-lambe em trânsito global

Hélio Schonmann

Como qualquer outra manifestação artística, a arte de rua deve contar com um olhar sensível, atento, criterioso. Esse olhar vem sendo construído ao longo das últimas décadas, num processo que envolve população, artistas, mídia e o próprio mercado. Bons exemplos dessa realidade estão nos blogs dedicados a essa manifestação, mantidos por inúmeros fotógrafos que, ao realizarem seus registros, selecionam o que encontram pelos muros, instituindo assim – intencionalmente ou não – verdadeiras curadorias. O francês Eric Marechal caminha nessa direção, criando um recorte qualitativo da arte de rua nas metrópoles por onde passa. Mas a natureza de seu trabalho vai muito além disso. Ele se transformou em agente do processo artístico que vem registrando – mesmo não sendo criador de nenhuma das obras que seu projeto STREET ART SEM FRONTEIRAS veicula. Seu foco é promover um intercâmbio de lambe-lambes entre diversos continentes – obras de artistas parisienses, coladas em São Paulo; de artistas paulistanos, coladas em Paris; e assim sucessivamente, em cidades como Seul, Salvador, Rio de Janeiro. Tudo documentado em http://www.flickr.com/photos/urbanhearts/*

A escolha do local para situar uma intervenção de rua tem grande importância, definindo muito do conteúdo da obra. Uma mesma imagem terá um significado muito diverso se estiver localizada numa área urbana sofisticada ou em outra, degradada. A relação estabelecida pelo STREET ART SEM FRONTEIRAS pode ser entendida, assim, muito mais como uma parceria com os artistas, do que como uma curadoria propriamente dita. E é como parceiro que Eric procura identificar, nas imagens que lhe são confiadas, as intenções de cada autor. A partir daí ele parte em busca de locais adequados para afixá-las, explorando as possibilidades que se apresentam em cada contexto urbano.

Na web é possível acompanhar a repercussão de um trabalho como o de Eric, que vai sendo também foco de “curadorias” externas, por parte daqueles que mantém outros blogs, registrando a arte efêmera na rua*. Isso nos remete a uma reflexão acerca da relação entre a obra fisicamente construída e o universo virtual: a tecnologia digital, indubitavelmente, facilita o registro e veiculação das imagens de intervenções urbanas, potencializando e expandindo seus conteúdos. É a tela plana do computador – instância mediadora por excelência, na vida do homem contemporâneo – enfatizando a importância do espaço físico da rua e da experiência sensorial direta, não mediada. E é exatamente essa não-mediação – tecnológica, conceitual, institucional, midiática, mercadológica – uma característica essencial, comum às diferentes manifestações de arte de rua.

Entre as principais virtudes da internet está sua natureza interativa. Nisso ela apresenta parentesco com o muro urbano – se bem que esse seja bem mais abrangente em seu convite à interação, por não exigir pré-requisitos, nem da parte do criador, nem do fruidor. Num mundo onde a informação digital tornou-se – quantitativamente falando – o principal canal de intercâmbio entre culturas, o STREET ART SEM FRONTEIRAS vem aproveitando a natureza e o potencial de cada mídia, demonstrando que suportes tradicionais como o papel podem, igualmente, criar pontes, definir novos horizontes, colaborar na construção de um olhar contemporâneo inclusivo – objetivo muito almejado, mas nem sempre atingido. Eis uma iniciativa que tem a dimensão e a simplicidade das grandes idéias.


*Veja também http://loveonthewall.blogspot.com/2009/11/from-brazil.htm;
http://loveonthewall.blogspot.com/2009/11/from-brazil_24.htm;
http://loveonthewall.blogspot.com/2009/11/from-brazil_23.html

ITINERÂNCIA SP no Street Art Sem Fronteiras - Paris

Graffiti, uma arte muito próxima da vida

Hélio Schonmann

Pela legitimidade e pela escala que vem atingindo – resultado de inquestionável aceitação popular - o graffiti constitui-se, hoje, no principal parâmetro para se pensar a arte pública efêmera na cidade de São Paulo. Uma linguagem com DNA transgressivo, mas que vem encontrando, cada vez mais, locais autorizados e/ou remunerados para se manifestar. Como se explica isso? Um exemplo, entre tantos, dessa realidade: no Morro do Querosene, reduto dos maranhenses na capital, casas passaram a ser grafitadas em 2008, por encomenda da comunidade. O que significa um acolhimento como esse? Quais são os vínculos que estão ligando o morador urbano ao graffiti?
É preciso, antes de tudo, buscar compreender a complexidade dos processos em jogo: nos verdadeiros museus a céu aberto, em que se constituem certas regiões de São Paulo, encontramos obras que são fruto da mais pura necessidade de expressão ao lado de outras, realizadas sob encomenda. São pólos que na verdade se complementam – e não se opõe, como pensam alguns – permitindo a sustentabilidade de uma manifestação orgânica, que vive em simbiose com o corpo da cidade, utilizando-o como suporte, enquanto vai contribuindo para a humanização de sua paisagem, tantas vezes inóspita. Essa sustentabilidade é conquista essencial, e torna a arte efêmera, hoje, uma alternativa importante a um circuito oficial de arte, cada vez mais restrito.
A relação entre arte e vida vem se estreitando assim, no espaço público, de maneira natural – uma conquista a que muitas correntes da arte contemporânea aspiram. Em parte essa aproximação deve-se ao fato de que, no graffiti, não há separação entre a elaboração da imagem e sua exposição – os dois momentos são concomitantes. Isso resulta num fazer artístico dessacralizado, pois a população se identifica não somente com a manifestação artística em si, mas com a própria figura do artista de rua, a dignidade com que ele realiza seu trabalho em meio ao caos do espaço público paulistano. Esse processo de dessacralização não se faz, portanto, às custas de um menosprezo pela elaboração da linguagem, muito pelo contrário.
Observando a interação do graffiti com a cidade, percebe-se que a substituição gradual das imagens, à medida em que estas entram em processo de deterioração, implica na regeneração permanente deste corpo imagético – da efêmera obra individual deriva, assim, a perenidade do conjunto coletivo em permanente estado de crescimento e transformação. Não será essa outra característica notável? Para o artista que optou por trabalhar no espaço público, pensar seu trabalho como fazendo parte de uma totalidade que cresce e se regenera – um tecido vivo – é extremamente estimulante. Significa que, de fato, ele não esta sozinho nessa imensa cidade. Trabalhando individual ou coletivamente, contribui com essa camada sempre renovada de imagens que recobrem os muros, viadutos, passarelas, calçadas...superfícies que se constituem numa verdadeira pele da cidade – cheia de cicatrizes, é verdade, mas também repleta de história, de riqueza e de uma beleza muito sua, que só a arte pode revelar.

Calçada do Beco do Batman, Vila Madalena, São Paulo. Graffiti de Hélio Schonmann



Graffiti em São Paulo: arte pública e o público da arte

Hélio Schonmann

O graffiti vem conquistando enorme importância no universo das artes visuais, ao longo das últimas décadas. E o público, que participação vem tendo nesse processo? A invejável capacidade de comunicação dessa linguagem tem como conseqüência um acolhimento cada vez maior por parte do morador paulistano, fato que talvez ainda não seja devidamente compreendido e nem suficientemente valorizado.
Vou me ater a um ponto, entre tantos que poderiam ser destacados, na relação do graffiti com seu público: a inexistência de intermediação entre as imagens e o observador. Na rua não existem curadorias, monitorias, textos teórico-explicativos. Ou seja: inexistem os filtros a que estamos habituados, no circuito das artes plásticas. Não quero com isso sugerir que a população repudie conscientemente esses filtros, nem muito menos pretendo entrar aqui na discussão sobre o mérito da seleção de obras nos espaços expositivos tradicionais. Constato tão somente que, em sua relação livre, direta e continuada com o transeunte, linguagens de rua aprenderam a dialogar com o universo imagético e sensível da população de uma maneira extremamente eficiente, criando vínculos profundos com o habitante da metrópole. O que a população tem visto, pelos muros da cidade, são manifestações que se dirigem a ela de forma direta, buscando atraí-la das mais variadas maneiras – através do estranhamento, da emoção, da denuncia, do humor. Constato também que essa intenção explícita de comunicação não impede, no trabalho dos melhores artistas de rua, uma elaboração incessante da linguagem. Uma linguagem que, cada vez mais, vai se pondo a serviço da cidade, como podemos constatar pelos dois eventos que comento a seguir.
O primeiro deles foi uma intervenção coletiva, promovida no início de 2009 por Ozi, um dos mais respeitados grafiteiros da cidade, nas vielas próximas ao Cemitério Chora Menino, na capital. Seu objetivo foi chamar a atenção para esses becos escondidos e praticamente esquecidos, tanto pelo poder público como pela própria população. Esse é um momento privilegiado para a arte de rua: quando ela se propõe a contribuir de forma positiva na transformação da relação do habitante da metrópole com o espaço público. Tenho voltado a essas vielas e acompanhado o que acontece no local, aproveitando tais oportunidades para ouvir os moradores. Percebo um nítido apoio, por parte deles, à intervenção realizada por essas dezenas de artistas de rua. É perceptível a intimidade com que muitos olham hoje para tais imagens, que passaram a fazer parte de seu cotidiano. Surge desse vínculo com o graffiti um afeto mais profundo por essa nova/velha paisagem, agora transfigurada. Eventos como esse podem contribuir de forma muito concreta na melhoria da relação entre cidade e cidadão. Isso sem falar no inegável estímulo ao interesse pelas artes visuais que elas promovem, particularmente entre os jovens.
O segundo exemplo ilustra de maneira quase literal uma concepção de arte que inclua, entre seus objetivos, a aproximação com o olhar do transeunte – nesse caso estamos falando de um evento de arte pública realizado num espaço institucional (se bem que pouco convencional). A intervenção-exposição TRANSLÚCIDOS*, promovida pelo Coletivo Água Branca, ocupou as paredes de numa estrutura envidraçada do parque de mesmo nome, em São Paulo. Sua proposta foi estabelecer um diálogo entre linguagens diversas – graffiti, stencil, lambe-lambe, gravura, pintura, desenho. Artistas habituados ao muro trabalharam lado a lado com aqueles habituados ao cavalete. Partiu-se da premissa que é em parques como o Água Branca que podemos encontrar o paulistano mais disponível para receber algo novo, que exija dele atenção e tempo – são, portanto, locais privilegiados para manifestações artísticas que se proponham a um trabalho coletivo e experimental como esse. Aqui o próprio suporte representou o único e sutil limite de separação entre os participantes da intervenção e aqueles que acompanhavam a evolução do trabalho. Daí resultou, tanto no plano simbólico como no concreto, uma notável proximidade com o observador. Crianças e adolescentes foram, como seria de esperar, os que mais se achegaram, buscando muitas vezes um contato físico com as imagens que iam surgindo, pouco a pouco, sobre o vidro. Nos registros fotográficos desse evento percebo olhares e gestos de concentração, curiosidade e encantamento. Eles sintetizam, a meu ver, o papel que a arte pública efêmera vem assumindo na vida da sociedade contemporânea.

* Participantes: Celso Gitahy, Elias Júnior, Hélio Schonmann, Lúcia Neto, Ozi, Paulo Barreto, Pedro Maluf, Rubi, Thiago Vaz.

Algumas visões de São Paulo - pinturas de Hélio Schonmann - 2007/2008

PASSAGENS

A presente exposição reúne um grupo de artistas em torno da representação da cidade de São Paulo em situação, numa abordagem que privilegia diálogos de aproximação e dissonância poética. O conceito de coletivo define-se aqui como receptivo à manifestação da experiência individual, ao mesmo tempo em que testemunha uma convergência de percepções sobre o contexto do trabalho artístico na atualidade. Uma interação de vivências iniciada em 2005 é, pela primeira vez, exposta - por trás dela, a pluralidade das experimentações plásticas, mutuamente disponibilizadas, abre espaço para um debate permanente acerca da construção da linguagem.

A Passagem da Consolação é espaço expositivo estreitamente vinculado à rua e à diversidade humana. Nesse contexto, a polifonia visual ora apresentada propõe inúmeras reflexões - seu fio condutor, o princípio de que a construção de identidades, na sociedade contemporânea, deve se dar através do (re)conhecimento do outro, do diferente. Assim se desenha esta mostra, que não é inicio nem fim, mas meio para adensar o processo coletivo em andamento, preparando a passagem para novas etapas. Pensamos esse encontro de vida e trabalho como caminho que vai na contra-mão à fragmentação que, cada vez mais, a megalópole impõe a todos nós.

Vera Chalmers e Hélio Schonmann