VI(VER) O LOCAL

Clarival do Prado Valladares, num texto onde comentava a relação do pintor Alberto da Veiga Guignard com a paisagem mineira, fez distinção entre duas dimensões essenciais da experiência humana: viver no local/viver o local. A primeira diz respeito ao lugar de nossa existência; a segunda, aos vínculos que tecemos com o entorno.
Partindo da formulação de Valladares, o projeto itinerante VI(VER) O LOCAL levanta questões que remetem à relação entre ser humano e lugar, numa sociedade cada vez mais pautada pela mediação tecnológica, pela informação sem fronteiras e por laços e referências daí decorrentes. Para essa primeira itinerância foram escolhidas duas cidades onde encontramos movimentação artística rica, singular e diversa: Caraguatatuba e Atibaia.
Na primeira, Antonio Carelli e Sandra Mendes vêm promovendo extenso programa de exposições, ensino e pesquisa, com o Projeto Arte Litoral Norte, iniciado há 25 anos, enquanto o ceramista Ben Hur Vernizzi desenvolve, há mais de dez anos, o Projeto Terramar (em parceria com a Fundação Cultural de Caraguatatuba – FUNDACC), movimento de grande significado artístico na área da cerâmica.
Em Atibaia, Matias Picón vem fomentando e potencializando, em parceria com a prefeitura local, uma fecunda movimentação de arte urbana e de intervenções no espaço público.
Aproximar-se das singularidades locais através da arte, relacionar, cotejar, abrir campo à contextualização mais ampla: com tais objetivos em mente definimos para o projeto VI(VER) O LOCAL uma itinerância em mão dupla, o que implica expor o trabalho dos artistas paulistanos em conjunto com artistas de cada localidade, reunindo todos, ao fim do processo, numa mostra em São Paulo.
Buscamos assim contribuir para a reflexão sobre a construção de identidades num mundo globalizado – mundo no qual a disposição em acolher e valorizar conteúdos culturais diferenciados, específicos a cada contexto da existência humana, vai se tornando verdadeiro paradigma, indissociável da própria idéia de contemporaneidade.


Hélio Schonmann

Projeto Itinerante VI(VER) O LOCAL



VER A CIDADE exposição na Oficina Cultural Oswald de Andrade

A mostra VER A CIDADE foi concebida como panorama de diferentes abordagens plástico/poéticas sobre o contexto paulistano. Por trás da pluralidade de relações e reações à urbe, aqui reunidas e cotejadas, podemos encontrar um mesmo compromisso com a vida artística da metrópole – materializado tanto nas obras em si, como no trabalho de formação em diferentes linguagens visuais, desenvolvido pelos artistas, junto às Oficinas Culturais Oswald de Andrade. Uma exposição da cidade, sobre a cidade, para a cidade.

Hélio Schonmann - curadoria



"No atelier de Hélio Schonmann..." um texto de Flávio Motta

No atelier de Hélio Schonmann encontramos um artista atento aos caminhos da própria sensibilidade. Vimos luminosidades douradas, sem ouro, de ocre e amarelos superpostos; azuis e violetas a lhes contrastarem. Desconfiamos que Chagall andou por aqueles recantos.
Gestos largos, nos últimos trabalhos. Tinta por todos os lados! Espirros de todas as cores. Pedras moídas, convertidas em tinta. Tinta pingando vibrações policromadas, cintilantes, transpondo os limites retangulares da tela e da superfície plana. Aqui e ali, camadas pastosas, grossas camadas ressecadas. A própria paleta e todo ambiente do pequeno quarto onde trabalha incendeiam a sensibilidade do observador. É um "achado"*, porém é um "objeto-sujeito" o precário e sujo banquinho com a paleta do artista. A mulher da limpeza**, por certo, ficaria perplexa. E, mais ainda, quando descobrisse, atrás de tanta coisa pintada, uma pequena paisagem das "casas proletárias" do Pari e outros recantos da cidade. De lá surgem, tranquilas, sensíveis, delicadas, amorosas; muito à vontade, - até com o vento forte, o assobio a entrar pela porta como um tufão vindo do outro mundo. Sentem-se à vontade com Giacometti, ou figurões do "fauvismo", do "expressionismo" e de qualquer outro "ismo". E então falam das crianças e das descobertas no mundo do encantamento, da inocência primordial e o "correr atrás do vento"!
Chegam a "Eclesiastes" 7:2-:
"It is better to go a house of mourning than to go o house of feasting".

Flávio Motta

* "objet trouvé"
** "mulher da limpeza" - personagem do livro de SARAMAGO, José. O conto da Ilha Desconhecida, São
Paulo, Companhia das Letras, 1999.

(Texto publicado no folder da exposição JOGOS, de Hélio Schonmannn, 2001, Capela do Morumbi, São Paulo)

A PALETA



IMAGENS DA INSTALAÇÂO "JOGOS"




Um depoimento de Francisco Maringelli sobre sua relação poética com São Paulo

Lançando mão de um olhar retrospectivo, constato a presença da paisagem paulistana no meu trabalho, desde os primeiros anos da década de 80. De início a figuração dos signos urbanos se construía, tão somente, por aqueles que impressionavam a retina e que se fixaram nos recessos da memória, traduzindo-se através de um simbolismo dramático.
À parte a natureza das poéticas visitadas e da pesquisa formal ao longo de três décadas, no âmbito da gravura em relevo, passei à experimentação com escalas maiores e com a fatura – que adquiriu uma caligrafia mais maleável, visando à superação das incisões caracterizadas pelos rastros das ferramentas utilizadas.
No momento, as imagens resultam da confluência de uma pesquisa em relação às potencialidades expressivas da gravura em relevo e de um enfoque poético que esquadrinha dentro de um tecido urbano restrito, paulistano, os caminhos pautados por obrigações profissionais e pela via de escape representada numa viagem à deriva, ansiosa por alguma surpresa, que não pode ser provida pela imaginação.
Nos trajetos, opero selecionando as construções que vivem sob o espectro da demolição, alguns ermos baldios com seus resquícios de natureza degradada, as naturezas mortas compostas pelos entulhos depositadas como despachos aos pés dos postes de iluminação, das incontáveis caçambas espalhadas por quase todos os bairros, etc...Destilo, enfim, uma poética em tom menor, ignorada e escarnecida, que para mim significa a essência da existência transitória dos signos visuais paulistanos e – para aqueles amantes da espetacularidade dos postais estaiados – os votos de uma jactância gozosa sem fim.

LEIA ABAIXO TEXTO SOBRE FRANCISCO MARINGELLI COM IMAGENS DE SEUS TRABALHOS

A xilogravura de Francisco Maringelli - texto de Luiz Armando Bagolin

OLHO NO ESCOLHO

Diferentemente da série, gravada em 2009, intitulada “Entre o Fio da Navalha e o Meio-fio da Calçada”, as imagens que compõem a presente exposição e o álbum gráfico de Francisco Maringelli insistem em protagonizar a cena, desalojando quase sempre a figura, costumeira em sua obra, do passante, do homem-cartaz, do mendigo, dele próprio, relegando-a ao canto, à sarjeta, à sombra, ao escolho. Encenam alguns lugares da cidade de São Paulo, arruinados, em seu estado atual, tais como o largo da Batata, o Bom Retiro, a baixa Augusta e a Brigadeiro Luiz Antonio que, eleitos à bola da vez da especulação imobiliária, expulsa os seus velhos habitantes e hábitos, eufórica pela implantação de novos. Cheirosos estes, bem mais, higienizam-se por detrás de vitrines lustrosas que guardam uma distância segura das caçambas de lixo, estas malcheirosas, onde velhos manequins, bonecos e bonecas aos pedaços despedem-se, desprezados.
Em “No Olho da Rua”, Maringelli elege trechos destes lugares, alçando-os à posição de locutores. Como num apólogo, as esquinas falam através de placas, inscrições em paredes e muros, evocando o diálogo há muito perdido para a violência do capital. Invocam as imagens o destinatário das gravuras no alarde Olhe! Genius Loci Relegado a Locatário de um Monturo, pois embora ainda eloquente, muito mais loquaz é o capital, o único mandatário. Sem mais Manda-Chuva, o malandro gato do desenho de nosso tempo, que vivia “na boa” numa lata de lixo, quem manda hoje é o Mandarim que, falando em inglês, escraviza seus semelhantes empoados nos fundos das lojas, na clandestinidade do reverso da vitrine.
Há Vagas Ilimitadas no Bom Retiro, com Direito ao Chá da Meia-noite, anuncia a garota, que a gravura só faz amplificar. Mas, jogado aos seus pés, o beco imundo e prenhe de carquilhas, afronta as noivas embelezadas para o fatídico dia, em maio de abate; indiferentes àquelas, pois inverossímeis para o atacado, as que se produzem em lascas arrancadas com as goivas cortantes, as sublimam, elevando-as, no papel arroz, do piso traçado por ratos e outros nojos em horas impróprias para as belezuras.
Transitam, outras vezes, as preciosas empertigadas atrás de rendilhas, paetês e lantejoulas sobre o solo encoberto, todavia sedimentado com centenas de tumbas indígenas esquecidas das cidades sob a cidade. O cultivo hoje, bem o sabe Maringelli, é o da grana, que torna a tudo bonito, mesmo os deploráveis signos deixados pelas reformas urbanas, cujos interesses urubuzam as hostes de pobres que bem poderiam ser empurradas para dentro do rio podre, como a ratada no conto do flautista. Por isso, a placa da Cardeal se põe em defesa do que se amontoa atrás dela, solicitando o recuo das tropas açoitadas diante do aberto da rua, reasfaltada às pressas por políticos cinocéfalos: Aos Antigos Moradores, as Batatas Podres é ato, pois, a um só tempo gráfico e político, à medida que denuncia a diáspora imobiliária em curso na região do baixo de Pinheiros.
Vagando sem norte o pouco que sobrou por estes lugares, rareiam gradualmente os índices de outrora, convertidos socialmente em intrusos abstrusos de futuro, para eles, porquanto, não planejado. Refugiam-se também na Augusta, baixa, em casarão cujo térreo em arcos como se move na gravura. Capta-o em nesgas diversas de brancos como sulcos gravados, ora sendo luzes, ora formas a descrever a iconografia incrustada naquele lugar, o olhar de Maringelli, que, em vista da perspectiva do rápido desaparecimento desses seres, promove, célere, uma limpeza generalizada no que concerne ao seu inventário de efeitos gráficos. Tal economia, consoante ao ato, explicita a narrativa pela imagem no epos, pois se trata de uma luta heroica na qual o herói, infelizmente, já está morto. Os cinos políticos também olharão para aqueles que restaram e talvez até lhes ergam cinicamente um memorial da resistência, feito de pedras, ossos e adubo humano. E, nesta ocasião, talvez riam com o riso travado de morte da caveira de Dura-Europos, que dura, acenando e dizendo: bye, bye, Dubai, bye, bye.

Texto de apresentação da exposição "No Olho da Rua", Galeria Gravura Brasileira, São Paulo, 2010



VEJA ABAIXO ALGUMAS OBRAS DE FRANCISCO MARINGELLI