Douglas Norris foi um representante da arte paulistana naquilo
que ela tem de mais subterrâneo. A mostra Douglas Norris: cartografias humanas
constitui uma primeira iniciativa, póstuma, destacando recortes significativos
de sua obra. Uma exposição que visa a estimular pesquisas sobre um artista
irredutivelmente recluso, que se tornou virtualmente desconhecido em seu
próprio meio.
Em seus desenhos, gravuras e
pinturas, drama e lirismo adensam-se mutuamente. O olhar de Douglas busca
abrangência na compreensão do humano, criando um universo de imagens que amplia
nosso espaço de reconhecimento e identificação com o outro. São Paulo é um de
seus focos preferenciais. Os retratos que realizou traçam um mapeamento
sensível da população paulistana, com ênfase na pluralidade étnica, cultural e
social. Essa atração pela diversidade resulta na montagem de um rico mosaico
humano, vinculando sua poética à urbe construída por levas de imigrantes. Mas
tal abordagem não se reduz ao registro da colorida tipologia local. Douglas vai
além: busca no Outro a base para a construção de uma cartografia afetiva que o
localize no mundo. Mergulhando na alteridade, encontra caminhos para realizar
ampla reflexão sobre a condição humana.
Enquanto São Paulo se agiganta como paisagem das massas
anônimas que hoje conhecemos, o artista a focaliza na perspectiva das múltiplas
existências individuais que a constituem. A prostituta, o mendigo, o bêbado;
Gino e o Sr. Jacó; o ferroviário, o faixa-preta, o sambista: cada um dos
retratados apresenta-se em sua força e fragilidade, provocando empatia no
observador. De um raro depoimento seu, extraímos trecho que ilustra os laços
que o vinculam aos modelos: “Perto do rio Tietê, retratei uma garotinha de nome
Ondina. Um rapaz, de pouca
fala, ficava nos observando. Convidei-o a ser retratado. Um dia, a bonequinha
da menina caiu dentro do rio e o rapaz, mesmo vestido, pulou dentro da água
para salvá-la. Voltei lá diversas vezes para desenhar e descobri que aquele
rapaz era bandido. Ondina me deixou a boneca de presente e o rapaz, seu
isqueiro. A arte muda tudo” (depoimento extraído de “Fragmentos do artista: Douglas Norris”, de Luiz
Ricardo Rufo). A relação entre arte e lugar ganha, nessa narrativa,
densidade e significação: Douglas entende seu papel não apenas como o de
observador e intérprete da vida, mas como de sujeito ativo, que interfere na
dinâmica da existência.
Sua obra é resultado do cruzamento de diferentes referências. A
trágica metafísica da solidão, plasmada por Edward Munch – que projetou na
relação homem/natureza os dramas da existência e da consciência – é uma delas.
Não por acaso, os jovens artistas alemães do início do século XX –
particularmente os membros do Die Brücke – deixam nele também sua marca,
principalmente no que se refere à expressividade do sinal gráfico e à
utilização desabrida da cor. Mas Douglas foge às deformações hiperbólicas do
grupo. Seu desenho se vale de deformações expressivas sim, mas elas não elidem
a volumetria estrutural da imagem.
Identificamos de imediato vínculos entre seu universo e o de
Oswaldo Goeldi, assim como reconhecemos a distância poética que separa os dois
artistas. A luz que banha a gravura de Douglas revela a forma em plenitude, ao
contrário do luminismo dramático e noturno de Goeldi. A abordagem do retrato
individual marca bem esse distanciamento, assim como sua visão da cena
paulistana: edifícios que lembram pesados blocos monolíticos dominam esses
cenários, enfatizando a escala mínima das figuras, impondo-se a elas – um
conjunto que pode ser pensado como o avesso dos retratos, plenos de empatia. Na conjunção entre os dois polos,
forja-se o humanismo do artista.
Mas Douglas não é somente o
observador apaixonado de uma São Paulo em rápida transição. É atraído também
por outra realidade: a da paisagem física e humana do litoral paulista, a ponto
de se autointitular “caiçara por adoção e coração”. Essa identificação motiva a
criação de imagens nas quais a praia e o mar não evocam, jamais, conteúdos
exóticos ou tropicais, constituindo um habitat repleto de significados
existenciais.
No desenho de Douglas, podemos identificar referências outras
além das nórdicas.O ensinamento dos mestres do primeiro Renascimento, como Giotto e Masaccio –
que pensaram a forma em chave escultórica – se faz presente. Essa marca pode ser creditada à convivência com artistas da “geração santahelenista”, particularmente Raphael
Galvez, pintor e escultor que desempenha papel fundamental em sua trajetória,
tornando-se grande amigo e orientador.
No extenso trabalho de pintura que realiza, a paisagem
sobressai como um dos temas dominantes. Suas primeiras telas apresentam
abordagem correlata à das xilogravuras, no que se refere à busca por clareza e
solidez. Percebemos nelas sua admiração pelas obras de Aldo Bonadei e dos
metafísicos italianos. Mas o desdobramento desse trabalho vai fazê-lo trilhar
caminho diverso. Em telas realizadas na década de 1990, o cenário é constituído
por um magma soturno, envolvente. Uma fatura visceral, mista de gestualidade e
fusão, constrói a atmosfera pesada dessas imagens. Cabe destacar a assimilação
que testemunhamos, aqui, das lições de Ernesto de Fiore. Mas o tom da série de
pequenas e impactantes telas é bem mais intimista, denso e trágico,
contrastando com a nota épica, expansiva e translúcida das pinturas de De
Fiori. Esse conjunto crepuscular, em que o contraluz tem protagonismo, bem pode
ser pensado como um réquiem à singular trajetória do artista.
Partindo do corpo-a-corpo com o cotidiano e do caldo de
referências que o nutriu, Douglas Norris desenhou com nitidez uma tessitura
pessoal de empatia e angústia, potência e fragilidade. Olhar nascido de olhares
diversos. Olhar que se expande e se aprofunda em sua circunstância.