Poéticas do lugar na arte brasileira
Hélio Schonmann
Minha cidade está toda cor-de-rosa,
Cor da infância longínqua.
Cidade imensa,
Casa sobre casa, sempre a mesma cor
Sobre o azul,
Inutilmente.
Trecho de poema de Aldo
Bonadei
Introdução
Clarival
do Prado Valladares, num texto onde comentava a relação do pintor Alberto da
Veiga Guignard com a paisagem mineira¹, fez distinção entre duas dimensões
essenciais da experiência humana: viver no local/viver o local. A primeira diz
respeito ao lugar de nossa existência; a segunda, aos vínculos que tecemos com
o entorno.
Acredito que nessa sintética formulação o autor indicou abordagem
pertinente a toda uma importante vertente da arte no Brasil. Enquanto artistas
como Rêgo Monteiro, Tarsila e Portinari trabalharam o conceito de identidade a
partir de simbolizações cuidadosamente escolhidas (a cultura Marajoara em Rêgo
Monteiro; o trabalho e a miscigenação, em Portinari; Tarsila, com suas cores
caipiras e imagética de cunho antropofágico), em Guignard é de vínculos
vivenciais e cotidianos que brotam muitos conteúdos poéticos – e uma identidade
de caráter profundamente emocional. Um claro sentimento de pertencimento ao
local se explicita em suas telas e não seria exagero afirmar que, sem ele, o
artista não poderia extrair da paisagem mineira toda sua potência simbólica.
Essa é uma relação com o lugar que tem precedentes importantes entre nós - como é o caso de Benedito Calixto, “caiçara
pintor”, na feliz definição de João Calixto.
Modernismo
brasileiro
Dentre os modernistas brasileiros, muitos cultivaram vínculo
estreito com o local. Em alguns deles essa abordagem é determinante, constituindo
uma das bases de sua construção poética – caso de José Pancetti, Oswaldo Goeldi
e do próprio Guignard.
Pancetti foi marinheiro e assim continuou se autodefinindo até o
final da vida¹. Em suas telas encontramos personagens estáticos, solitários,
mirando um oceano lírico e intenso, quase hipnótico. Aí imperam ordem,
limpidez, síntese e uma resultante cromática que traduz, em chave apolínea, a
luz embriagadora das praias baianas.
Mas também trazem conteúdos outros essas paisagens litorâneas,
contaminadas que estão por notas da mais densa melancolia. De um lado, a
comoção diante da beleza local; de outro, o mais severo rigor formal: da tensão
entre esses dois vetores resulta o clima metafísico singularíssimo das telas de
Pancetti. Uma poética que se nutriu no sonho do impossível retorno ao mar.
Já em Goeldi nos deparamos com a infinita empatia pelo local, no
que ele tem de mais humilde, precário e mesmo inusitado. Seu vínculo foi
estabelecido com “o Rio suburbano” e
seus “aspectos estranhos”: “postes de luz enterrados até a metade da
areia, urubu na rua, móveis na calçada” ². Num segundo momento o artista
mergulhou em outra dimensão desse Rio de Janeiro desglamourizado – o cotidiano
dos pescadores, com os quais nutria a mais profunda identificação. Encontrou
nesses contextos seu tema por excelência: um ser humano à deriva, cuja
existência se desenvolve em meio a uma paisagem soturna, dramática, humanizada
ao limite. Sob a luz noturna que banha essas cenas, homens, animais e objetos
vão se transformando em símbolos potentes de vida e morte.
Guignard é caso emblemático de vínculo com o local. Em sua obra,
Minas é cenário dos mais variados temas – retratos, vasos de flores, naturezas
mortas, cenas históricas, religiosas e de costumes. Nele a paisagem mineira pode ser pensada como
palco, objeto e medida de uma poética pautada pela exacerbação lírica e pela ousadia
formal – ousadia camuflada sob o manto da mais proverbial singeleza. Num
cenário que une a força da arquitetura barroca e o encanto da topografia
mineira acontece um poderoso embate plástico: de um lado, soluções de natureza
gráfica (a linha definida a pincel, fechando formas que o artista desejou
destacar e/ou descrever); de outro, uma construção essencialmente pictórica,
líquida – quase vaporosa – dada ao espaço.
Muitos artistas modernos trabalharam o registro gráfico associado
ao pictórico, disso não resta dúvida. Mas em que outro pintor esse abismo
formal foi tão explicitamente enfatizado? A unidade, na pintura de Guignard,
brota desse contraste – que encontra, nas suas derradeiras paisagens, a
expressão mais radical. Nelas, em meio a um mar de névoa translúcida,
definem-se os sucessivos planos da serra, com sua geografia envolvente. Aí,
diminutas igrejinhas e frágeis balões surgem como pontos materialmente
circunscritos, focados, definidos – resultado da ação humana, remetem à ideia
de cultura, de história, revestindo essas cenas de poderosa carga simbólica.
O que norteava seu fazer? Uma profunda identificação com a vida
local, filtro de mediação entre sua sensibilidade e o universo. Minas Gerais constituiu,
assim, a “medida de todas as coisas” da
utopia lírica Guignardiana.
Pintura
paulista
A obra de muitos dos pintores paulistanos contemporâneos de
Guignard bem pode ser pensada à luz dos conceitos formulados por Clarival do
Prado Valladares. Entre aqueles cujo trabalho ficou mais marcado por vínculos
com o local destaco Aldo Bonadei, Raphael Galvez e Mick Carnicelli, que criaram
em contato intenso com a cidade e suas imediações. Uma lista a qual poderiam
ser acrescidos tantos outros, como, por exemplo, Francisco Rebolo Gonzales,
Mario Zanini e Joaquim Figueira.
Em Bonadei a estrutura da imagem pictórica identifica-se com a
própria geometria do desenho urbano, emergindo daí uma abordagem construtiva
rigorosa, mas também lírica e intensamente cromática. Em muitas de suas
naturezas-mortas a cidade como que invade o cenário do atelier, definindo um
contexto no qual a paisagem exterior vai constituindo densa interioridade.
Uma visão tipicamente bonadeiana é aquela composição com recorte
sangrado, quase sem céu visível ou primeiro plano destacado – apenas uma “cidade imensa”, sugerida na sobreposição
de “casa sobre casa”, como nos versos
de sua autoria acima transcritos. Essas
telas sintetizam a trajetória de Bonadei, que se tornou o mais reconhecido pintor
de nossa paisagem urbana – grande representante paulistano daquilo que
poderíamos pensar como uma poética do
pertencimento. Em sua obra, a identificação entre artista, local e
linguagem é explícita, fluindo com uma harmonia e intimidade que a metrópole
poucas vezes – antes ou depois dele – voltou a inspirar.
Abordagem diversa, mas não menos representativa, é a que
encontramos em Raphael Galvez. Os arrabaldes proletários pintados com tanto
vigor pelo artista situam o observador numa posição periférica à urbe.
Vislumbramos/pressentimos nestas paisagens, a cidade que vai se agigantando, ao
longe. Drama, tensão e movimento
alternam-se a cenas onde a intensidade pictórica resulta em sereno equilíbrio.
Sua obra materializa um vínculo à flor da pele, estabelecido tanto com o contexto local como com a
própria linguagem. O artista explorou ao limite a agilidade do meio, executando
suas manchinhas¹ sempre a la prima².
Isso permitiu que estabelecesse conexão direta entre instante atmosférico e
instante emocional, o que ampliou de maneira notável seu arco de possibilidades
expressivas.
Cabe aqui uma analogia entre a equação pictórica de Galvez e o
processo histórico local: assim como São Paulo ia absorvendo levas e levas de
imigrantes, o pintor metabolizava as mais diferentes influências – francesas,
italianas, alemãs, somadas à dos artistas locais. Da fusão de tantas e tão
variadas referências brotou uma poética com sotaque inequivocamente
paulistano.
O centro de uma São Paulo que se transformava, inexoravelmente, na
grande e impessoal metrópole da atualidade: esse o foco poético de Mick
Carnicelli. Em seus pátios vazios e avenidas vistas do alto, a solidão urbana
esta à espreita, fazendo-nos mergulhar em sutil, mas inquietante dualidade: sua
fatura vibrante e harmonias cromáticas envolventes aproximam nosso olhar da
paisagem, mas o ângulo de observação adotado e a ostensiva ausência de seres
humanos nos contextos representados nos distanciam dela. Mick nos remete a uma relação
de caráter dual, que a própria população acaba por nutrir, tantas vezes, com
sua cidade.
O processo desordenado de crescimento da megalópole paulistana tem
sido pautado por uma marcante tendência à destruição de sua anterior fisionomia
arquitetônica – o que vai acentuando o desenraizamento do paulistano, mesmo daquele
aqui nascido, transformado tantas vezes em órfão de seu cenário natal.
Carnicelli morou na Avenida Paulista, no período correspondente a um dos mais
traumáticos processos de apagamento de nosso passado urbano – o início da destruição
de seus famosos palacetes. Algumas das paisagens que realizou registram a
construção ou a presença dos primeiros grandes edifícios nesse local, tão pleno
de significado para a cidade. Essas construções verticais assumem a condição de
verdadeiros personagens em suas telas – algumas vezes sólidas e imponentes,
outras, quase invasivas, como que espreitando o observador por trás dos muros.
A obra de Carnicelli foi a que melhor expressou as consequências
de um dinamismo urbano que, no limite, tornou-se quase desumano. Nela, o
sentido de pertencimento vai sendo como que virado pelo avesso. O fato de ser
imigrante – veio para o Brasil com seis anos de idade – contribuiu, com
certeza, para definir esse olhar, no qual aproximação e distanciamento se unem
em sutil tensionamento. Define-se assim uma poética que dialoga de forma
potente com a contemporaneidade.
Bonadei, Galvez e Carnicelli são artistas fundamentais, se
buscamos compreender a gigantesca megalópole. Criaram verdadeiros paradigmas da
paisagem local, remetendo-nos a facetas diversas de seu universo urbano e
suburbano. Deixaram como legado a indicação de caminhos de reflexão sobre as singularidades
de uma metrópole em permanente estado de mutação.
A
busca por uma identidade coletiva
Faço aqui uma distinção entre artistas que trabalharam a partir de
símbolos explícitos de brasilidade (como Tarsila, Portinari, Rêgo Monteiro) e
aqueles que se nutriram da experiência de viver
no local/viver o local, construindo poéticas estreitamente vinculadas aos
contextos de sua existência cotidiana. São abordagens correlatas mas, a
princípio, distintas, caracterizando
duas importantes vertentes do modernismo brasileiro. Lidam ambas com questões
referentes à identidade coletiva – a primeira, de maneira direta; a segunda, de
forma indireta. Não sendo excludentes entre si, podem tornar-se complementares
– como acontece na obra de Guignard, admirável síntese entre as duas.
Local
e global
É importante frisar que a riqueza poética que vislumbramos nesses
artistas não se confunde com o registro iconográfico. Muito da paisagem focada por
eles já não existe e, evidentemente, isso acrescenta interesse suplementar à
sua obra – mas tal qualidade não deve nos desviar dos conteúdos essenciais do
trabalho que realizaram. Em todos os grandes criadores aqui referidos a
paisagem foi, sobretudo, espelho de subjetividade. Eles se localizaram através
dela e se identificaram com ela. Explicitaram assim um pertencimento que, com
certeza, não era exclusivo deles enquanto indivíduos, mas encontrava-se
presente no contexto social da época.
No mundo que vem se configurando a partir de meados do sec. XX,
vínculos locais dessa natureza talvez estejam, sob vários aspectos, se
afrouxando. Mas, quando hoje nos deparamos com uma das muitas imagens do Pico
do Jaraguá, realizadas por Evandro Carlos Jardim, não há como duvidar: tais
vínculos continuam a existir – mesmo que transfigurados – permanecendo como uma
das chaves definidoras da identidade humana. Penso que seja oportuno lembrar
aqui um verso célebre de Gilberto Gil – “a
Bahia já me deu régua e compasso” – no qual o compositor explicita a dívida
que seu ideário de abertura para o mundo teve (e tem) com uma sólida referência
local.
A relação global/local parece estar se reconfigurando, nesse
início de milênio, depois de um período de quase generalizado deslumbramento
pela assim chamada “globalização” – o que levou a uma perigosa desatenção para
com as realidades locais. Nessa perspectiva, é urgente rever e repensar a
produção artística que se debruçou sobre diversas facetas da natureza e do
homem, ao longo de nossa história. Sem isso não há como desenvolver “régua e
compasso” adequados para nos localizarmos, de forma mais precisa e ativa, num
mundo onde a disposição em onde a disposição em acolher e valorizar
conteúdos culturais diferenciados – específicos a cada contexto da existência
humana – vai se tornando verdadeiro paradigma, indissociável da própria ideia
de contemporaneidade.
Notas
Introdução
1. Guignard/ Texto de
Rodrigo M. F. de Andrade; Comentários sobre os quadros Clarival do Prado
Valladares – Ediarte,1967.
O autor formulou um decálogo
a partir da abordagem poética de Guignard:
I – Viver no local
II –
Viver o local
III – Amar a história e a gente.
IV – Pintar a alma da história e da gente
sobre um mínimo de local.
V – Deixar que as cores sejam as coisas.
VI – Fazer o difícil, até o extremamente
difícil, no jeito do mais simples.
VII – Eliminar sombras. A luz nasce dos
objetos.
VIII – A distância é um problema da
imaginação, não da pintura.
IX – O movimento é um problema da pintura,
da sucessão e percepção dos tons, e não da narração.
X – Luz, tempo, clima, hora do dia, névoa do
anoitecer, são matérias que se fazem em tintas.
2.Citado por João Calixto in “Calixto - o caiçara pintor”. Catálogo
“Benedito Calixto: obras inéditas”, Dan Galeria, 1984
Modernismo brasileiro
1. “Se eu pudesse recomeçar a vida, seria novamente marinheiro”
declaração feita por Pancetti, em 1958, ao escritor João Condé, na Revista O
Cruzeiro. Conforme “Pancetti – um pintor
pintor”/Texto de Olívio Tavares de Araújo; Catálogo, Galeria Arte do Brasil,
1997
2. Entrevista de Goeldi a Ferreira
Gullar publicada em catálogo de 1957
Pintura paulista
1. Pequenos formatos, realizados
de maneira espontânea.
2. Trabalho realizado em uma única sessão.
VEJA ABAIXO ALGUMAS OBRAS DOS ARTISTAS CITADOS