Desígnios gráficos

Hélio schonmann

“Bem sabemos que a palavra ‘desenho’ tem, originariamente, um compromisso com a palavra ‘desígnio’. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vínculos entre as duas palavras, estaremos também recuperando a capacidade de influir no rumo do nosso viver.” Através dessa sintética formulação, Flávio Motta nos põe em contato, no texto “DESENHO E EMANCIPAÇÃO” (publicado no catálogo da mostra desenho industrial e comunicação visual, fauusp, 1970), com a vastidão de questões que se colocam à nossa reflexão, quando focamos um tema tão amplo e complexo como aquele, inscrito na palavra “desenho”.
Em poucas e densas páginas o autor analisa as diversas dimensões semânticas do termo, a fim de relacioná-las a uma abordagem crítica da história de nossa formação cultural, chegando à constatação de que “no Brasil, possivelmente, desenho já significou mais do que significa. Às vezes ocorre com as palavras a depauperação correspondente àquela que se verifica no solo, sub-solo e nas pessoas”.
Exemplificando essa realidade, Motta prossegue com a seguinte narrativa: “Uma ocasião perguntamos a um caipira na cidade de jambeiro (estado de São Paulo) com quem ele aprendera fazer ‘figurinhas de barro para presépios’? quem lhe dera os modelos? quem lhe ensinara? respondeu, diante de uma pequena escultura: ‘o desenho é meu mesmo’. Naquela oportunidade, os estudantes que nos acompanhavam ficaram surpresos com o sentido do termo. Para a maioria dos jovens, desenho era, apenas, registro gráfico, expressão em linhas, manifestação de formas em duas dimensões, esboço, traçado. Em verdade, os estudantes estavam mais próximos às lições do neoclassicismo que tanto influíram no ensino artístico brasileiro. herdeiros dos mestres franceses que chegaram em 1816, eles estavam perplexos com o sentido mais amplo de um desenho que se identificava à concreção do pequeno objeto elaborado pelo caipira. Ali estava uma situação paradoxal. O caipira se nos afigurava um herdeiro do sentido da palavra ‘desenho’, de proveniência anterior à missão francesa. ele que como indivíduo vivia dentro das maiores carências e mais parecia a imagem melancólica do jeca tatu; ele que parecia viver um ‘tempo parado’, era também um profundo conservador, e restituía uma significação mais rica e mais humana. O que se perdeu da palavra, em boa parte se perdeu do homem.”
A qualidade emancipadora do desenho prende-se, em grande medida, à abrangência de seu papel enquanto fundamento das demais manifestações da visualidade. Em função disso a reflexão acerca dos princípios da linguagem ganha relevo, quando buscamos construir um fazer artístico que “recupere a capacidade de influir no rumo do nosso viver”, como o autor nos sugere.
No próprio texto de Motta encontraremos um ponto de partida adequado a essa reflexão: o caipira nele citado criou e construiu sua pequena figura de barro a partir da definição de relações entre cheios e vazios. Não é difícil constatar que um conjunto de sinais gráficos inscritos num plano – aquilo que os estudantes entendiam como “desenho” – será igualmente constituído a partir de relações dessa natureza: a tridimensionalidade da peça de presépio define-se pela relação entre volumetria da matéria “cheia” (barro) e espacialidade “vazia” (interna e externa) por ela definida; já no trabalho realizado sobre superfície plana, encontraremos rastros de matéria – pigmento – depositados no suporte, ou seja, uma área “cheia” cercada de espaço não preenchido (“vazio”). Em alguns casos essa construção pode se inverter e, assim, duas manchas muito próximas podem caracterizar, em seu entremeio vazio, um sinal gráfico. É possível, portanto, pensar a relação cheio/vazio como aquela que estrutura um “raciocínio de desenho” em todas as suas dimensões – tanto no sentido mais amplo do termo, como no mais restrito.
A exposição 16 OLHARES: DESENHOS está focada na linguagem gráfica trabalhada sobre suporte plano. Por isso é pertinente aqui levar adiante alguns aspectos dessa questão, sob a ótica estrita da imagem bidimensional: ponto, linha e mancha constituem três grandes categorias de sinais gráficos – categorias relativas, pois a linha pode ser pensada como uma mancha estreitada e a mancha, como uma linha dilatada, por exemplo. O que nomeamos por mancha pode se constituir de diferentes maneiras: linhas tramadas; linhas e/ou pontos justapostos; área coberta por pigmento (a mancha feita através de espalhamento do pigmento, com pincel ou outro instrumento). No caso de trama ou justaposição de linhas ou pontos, a mancha apresenta, internamente, espaços vazios que tem importante papel construtivo – e aqui chegamos a uma constatação que reforça e complementa a primeira conclusão: na linguagem gráfica nos valemos, ao mesmo tempo, da relação cheio/vazio como ferramenta de construção da imagem e como eixo do raciocínio que organiza o processo construtivo.
Desenhar é compor: conceber e organizar um determinado campo, definir outros campos dentro desse campo maior – e ainda outros, menores, dentro destes. Desenhar é também estruturar: articular relações que vinculem esses campos entre si – separando, hierarquizando, sequenciando, mas também fundindo e unificando. Desenhar é definir: materialidade, espacialidade, movimento, ritmo, peso, luz – mesmo que isso se realize pelo avesso, ou seja, que a materialidade se apresente imaterial; a espacialidade, bidimensional; o movimento, estático; e assim sucessivamente.
Compor, estruturar, definir: desenhar corresponde, de fato, a um gesto essencial de afirmação construtiva/expressiva. Vivemos um momento em que a necessidade de expressão que o ser humano carrega dentro de si precisa, cada vez mais, ser afirmada e reafirmada. Promover uma exposição centrada no desenho e discutir, por meio dela, o papel dessa linguagem, é uma maneira de assumir posições diante da contemporaneidade.
Os artistas incluídos nesse projeto cultivam o desenho como linguagem autônoma, mas também como desígnio de transformação – intenção concretizada através da participação de todos num processo de reflexão, tão extenso quanto intenso, cujo objetivo é definir campos de referência comuns: em reuniões abertas e periódicas, as obras pessoais vem sendo apreciadas, analisadas, discutidas. Estruturada em ciclos que se renovam, essa iniciativa trabalha a construção de um olhar, que se busca afinado com o meio e com a história.
Na sequência desses encontros, cada participante assume, alternadamente, papel de expositor e fruidor. Uma trama de experiências vai assim sendo estruturada – os fios constituídos de vivência, percepção, intuição e reflexão. Essa tessitura vem, ano após ano, sendo elaborada de forma quase subterrânea. Nela, poéticas muito diversas tem sido abordadas sob uma ótica que contempla a identidade. E múltiplas questões, inerentes aos processos individuais de criação, vão surgindo, uma a uma, sob aquela singular luz que a arte – e a reflexão sobre a arte – produz. Um projeto de convivência e trabalho, que novamente nos remete a Flávio Motta: “Na medida em que uma sociedade realiza suas condições humanísticas de viver, então o desenho se manifesta mais preciso e dinâmico em seu significado”.