Camilo Thomé mira São Paulo como quem se interroga num espelho. O artista vive a metrópole como extensão natural de seu mundo interior, criando através dela um consistente conjunto de indagações visuais, focadas na vida paulistana do início do sec. XXI.
Seu
trabalho apresenta afinidade com extensa linhagem de artistas brasileiros, que
vem extraindo de paisagens locais caminhos de auto-revelação e iluminação da
vida coletiva. Uma linhagem que remonta a Benedito Calixto, Guignard, Goeldi. Como
tantos de seus ilustres predecessores, o vínculo poético que Camilo estabelece com
o local contempla geografia e historia. A metrópole transforma-se, em suas
gravuras, num portal de reflexão sobre uma época.
Muitos
dos contextos que atraem o olhar do artista são constituídos por espaços de
fluxo, de passagem. Como estações de metrô, por exemplo - locais que podem ser
pensados como “não-lugares”, no sentido que o antropólogo Marc Augé deu a essa
expressão: locações nas quais o ser humano tende a não estabelecer vínculos,
nem com o entorno, nem com seu semelhante. Nichos de impessoalidade e
desenraizamento. Essa predileção, por si só, já é reveladora da visão do artista, no que se refere à cidade
e à contemporaneidade. No trabalho de Camilo a poética do lugar transformando-se
também numa poética do não-lugar.
As
cenas em que focaliza o descomunal camelódromo paulistano são marcadas pela saturação
quantitativa de produtos e pessoas – superabundância temperada pela solidão. Nessa
linha de abordagem o artista definiu diversos focos temáticos - Galeria do
Rock, Mercado Municipal, Livraria Cultura e outras locações emblemáticas de
comércio, na capital. Em contraponto a esses trabalhos, situo o conjunto das paisagens
de caráter mais panorâmico. Nelas, Camilo
persegue a síntese. Sensível à força plástica das massas de concreto e
asfalto - entremeadas por vegetação e pesadas nuvens - deixa-se inebriar pela potência
física da urbe, envolvendo-nos habilmente nesse fascínio.
Passantes
anônimos povoam suas imagens. Mas não é só o anonimato que se faz presente nelas
– deparamo-nos também com o avesso dessa massa humana marcada pela indeterminação. Em muitas paisagens figuram
marcos urbanos facilmente identificáveis. São cenas que nos colocam diante de um
paradoxo: enquanto os habitantes não possuem rosto ou identidade, a cidade -
essa sim - possui face reconhecível. Uma assimetria que revela olhar acurado, resvalando
pela ironia, sobre a supermodernidade
que nos envolve a todos.
Elaborar
a figuração de uma megalópole
vertiginosamente mutante como a nossa não constitui tarefa banal. O fato agravante,
no que se refere a São Paulo, é que a
cultura local não parece estimular muito essa empreitada. Se em outras
localidades encontramos exemplos vigorosos de interpretação da paisagem, penso
que a mirada que muitos artistas visuais vem lançando à capital tende a se
fixar mais no registro físico - imagens panorâmicas de gigantismo e ícones
arquitetônicos em profusão. Sobrevoos, não mergulhos. Dentre aqueles que buscam
(ou buscaram) penetrar a alma da cidade, raros tem (ou tiveram) seu trabalho reconhecido,
na medida de sua importância – e as raras exceções só confirmam a regra. São
Paulo pouco se conhece – e parece recear se conhecer.
Nesse
contexto, a obra que Camilo vem elaborando só pode ser descrita como de
resistência e saudável obsessão. Esse é um artista, por sinal, que tem como
características marcantes a constância, a resiliência e a disciplina. Realiza,
silenciosa e subterraneamente, um trabalho que já vai somando quatro décadas,
movido exclusivamente por uma necessidade de expressão incontornável. Com esse
perfil, é sintomático que eleja São Paulo como tema.
A
cidade constitui um fabuloso enigma. Como todo enigma, tende a ser obsedante
para aqueles que se aventuram em seu território. Camilo, nascido e criado em
Olímpia, interior do estado de São Paulo, foi atraído por essa grande indagação
que chamamos metrópole, enredando-se apaixonadamente nela. Vindo de “outro sonho feliz de cidade”,
encontrou uma perspectiva muito pessoal para figurar os avessos paulistanos.
A opção pela xilogravura – seu meio preferencial - corresponde
a uma necessidade poética: a atração que sente pela clareza afirmativa da forma
encontra expressão natural no jogo de manchas em alto contraste, marca dessa
linguagem. Outra característica da gravura que o atrai é a facilidade na
elaboração de variações sobre uma mesma imagem - campo riquíssimo para a
pesquisa gráfica. Seus trabalhos são apresentados, via de regra, em pelo menos
dois estágios distintos – monocromático e cromático. Cada um constitui obra
autônoma. A cor, quando se faz presente, não assume papel acessório - chega
como protagonista, transformando poderosamente a natureza da imagem.
Nas
gravuras monocromáticas encontramos estrutura essencialmente linear de espaço –
linear não no sentido gráfico do termo, mas por apresentar uma sucessão de
planos claramente legíveis. Quando a cor invade a imagem, não segue
necessariamente essa lógica. Chega a subvertê-la, naquelas inúmeras gravuras
nas quais são utilizadas tonalidades cromáticas idênticas, do primeiro ao último
plano. Essas soluções embaralham a sensação de profundidade, criando uma espacialidade
mais complexa e inquietante.
Nas
gravuras monocromáticas podemos nos imaginar caminhando num espaço
perspectivado. Nas gravuras cromáticas o caminhar é outro: nosso olhar vai e
vem - a relação entre superfície e profundidade apresenta-se tensa e singular,
em cada obra. A resultante não se pauta mais tanto em equivalências com o real.
Poderíamos pensar essa cor como elemento desabridamente emocional, que adentra um cenário onde reina grande controle de emoções. Ela pode ser única, ou então dual – o tom quente geralmente situado nas áreas de luz e o frio, nas de sombra. Em alguns poucos casos, podem surgir novas tonalidades. Em todos esses trabalhos, sentimos a energia transformadora irrefreável que a abordagem cromática traz consigo. A força e beleza desse processo advém da própria existência do controle a ser rompido. Um rompimento que não destrói, não demole estruturas, antes ressignifica a imagem.
A
gravura monocromática possui um caráter mais afeito à crônica visual - crônica
dos lugares e não-lugares paulistanos. Mas isso não implica que ela resvale
pela descrição prosaica, muito pelo contrário. A composição rigorosa confere a essas imagens serena grandeza. O mistério
apresenta-se aqui silencioso, latente. Com ecos desse silêncio Camilo constrói
sua interpretação do cotidiano – uma visão da alma paulistana com forte acento metafísico.
A
gravura cromática perde um pouco esse caráter
de crônica. O cenário já não possui a mesma inocência topográfica. A metafísica
ganha um componente por vezes dramático. Cada avenida, cada estação de metrô,
afirma seus mistérios em voz muito afinada. Um fluxo de massas nervosas nos espreita,
por trás dos edifícios, sem, contudo, dissolver a solidez das coisas. O dinamismo
aqui não é contraditório com peso e densidade - antes, potencializa essas
qualidades, alçando-as a um novo patamar. O perene e o monumental rondam a São
Paulo de Camilo Thomé.
Hélio Schonmann
(Texto publicado no livro SÃO PAULO/ XILOGRAVURAS - UMA CRÔNICA DA CIDADE, de Camilo Thomé)