ALÉM DO LUGAR - xilogravuras de Camilo Thomé

 

Transforma-se o amor na coisa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

 

Luís Vaz de Camões

 

“Todo estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem (.....)

De maneira que  a arte que queira representar bem a realidade  terá de a dar através de uma representação  simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior”

 

Fernando Pessoa

 

 

 

Camilo Thomé mira São Paulo como quem se interroga num espelho.  O artista vive a metrópole como extensão natural de seu mundo interior, criando através dela um consistente conjunto de indagações visuais, focadas na vida paulistana do início do sec. XXI.

Seu trabalho apresenta afinidade com extensa linhagem de artistas brasileiros, que vem extraindo de paisagens locais caminhos de auto-revelação e iluminação da vida coletiva. Uma linhagem que remonta a Benedito Calixto, Guignard, Goeldi. Como tantos de seus ilustres predecessores, o vínculo poético que Camilo estabelece com o local contempla geografia e historia. A metrópole transforma-se, em suas gravuras, num portal de reflexão sobre uma época.

Muitos dos contextos que atraem o olhar do artista são constituídos por espaços de fluxo, de passagem. Como estações de metrô, por exemplo - locais que podem ser pensados como “não-lugares”, no sentido que o antropólogo Marc Augé deu a essa expressão: locações nas quais o ser humano tende a não estabelecer vínculos, nem com o entorno, nem com seu semelhante. Nichos de impessoalidade e desenraizamento. Essa predileção, por si só, já é reveladora  da visão do artista, no que se refere à cidade e à contemporaneidade. No trabalho de Camilo a poética do lugar transformando-se também numa poética do não-lugar.

As cenas em que focaliza o descomunal camelódromo paulistano são marcadas pela saturação quantitativa de produtos e pessoas – superabundância temperada pela solidão. Nessa linha de abordagem o artista definiu diversos focos temáticos - Galeria do Rock, Mercado Municipal, Livraria Cultura e outras locações emblemáticas de comércio, na capital. Em contraponto a esses trabalhos, situo o conjunto das paisagens de caráter mais panorâmico. Nelas, Camilo  persegue a síntese. Sensível à força plástica das massas de concreto e asfalto - entremeadas por vegetação e pesadas nuvens - deixa-se inebriar pela potência física da urbe, envolvendo-nos habilmente nesse fascínio.

Passantes anônimos povoam suas imagens. Mas não é só o anonimato que se faz presente nelas – deparamo-nos também com o avesso dessa massa humana marcada pela  indeterminação. Em muitas paisagens figuram marcos urbanos facilmente identificáveis. São cenas que nos colocam diante de um paradoxo: enquanto os habitantes não possuem rosto ou identidade, a cidade - essa sim - possui face reconhecível. Uma assimetria que revela olhar acurado, resvalando pela ironia, sobre a  supermodernidade que nos envolve a todos.

Elaborar a figuração de  uma megalópole vertiginosamente mutante como a nossa não constitui tarefa banal. O fato agravante, no  que se refere a São Paulo, é que a cultura local não parece estimular muito essa empreitada. Se em outras localidades encontramos exemplos vigorosos de interpretação da paisagem, penso que a mirada que muitos artistas visuais vem lançando à capital tende a se fixar mais no registro físico - imagens panorâmicas de gigantismo e ícones arquitetônicos em profusão. Sobrevoos, não mergulhos. Dentre aqueles que buscam (ou buscaram) penetrar a alma da cidade, raros tem (ou tiveram) seu trabalho reconhecido, na medida de sua importância – e as raras exceções só confirmam a regra. São Paulo pouco se conhece – e parece recear se conhecer.

Nesse contexto, a obra que Camilo vem elaborando só pode ser descrita como de resistência e saudável obsessão. Esse é um artista, por sinal, que tem como características marcantes a constância, a resiliência e a disciplina. Realiza, silenciosa e subterraneamente, um trabalho que já vai somando quatro décadas, movido exclusivamente por uma necessidade de expressão incontornável. Com esse perfil, é sintomático que eleja São Paulo como tema.

A cidade constitui um fabuloso enigma. Como todo enigma, tende a ser obsedante para aqueles que se aventuram em seu território. Camilo, nascido e criado em Olímpia, interior do estado de São Paulo, foi atraído por essa grande indagação que chamamos metrópole, enredando-se apaixonadamente  nela. Vindo de “outro sonho feliz de cidade”, encontrou uma perspectiva muito pessoal para figurar os avessos paulistanos.

A opção pela xilogravura – seu meio preferencial - corresponde a uma necessidade poética: a atração que sente pela clareza afirmativa da forma encontra expressão natural no jogo de manchas em alto contraste, marca dessa linguagem. Outra característica da gravura que o atrai é a facilidade na elaboração de variações sobre uma mesma imagem - campo riquíssimo para a pesquisa gráfica. Seus trabalhos são apresentados, via de regra, em pelo menos dois estágios distintos – monocromático e cromático. Cada um constitui obra autônoma. A cor, quando se faz presente, não assume papel acessório - chega como protagonista, transformando poderosamente a natureza da imagem.

Nas gravuras monocromáticas encontramos estrutura essencialmente linear de espaço – linear não no sentido gráfico do termo, mas por apresentar uma sucessão de planos claramente legíveis. Quando a cor invade a imagem, não segue necessariamente essa lógica. Chega a subvertê-la, naquelas inúmeras gravuras nas quais são utilizadas tonalidades cromáticas idênticas, do primeiro ao último plano. Essas soluções embaralham a sensação de profundidade, criando uma espacialidade mais complexa e  inquietante.

Nas gravuras monocromáticas podemos nos imaginar caminhando num espaço perspectivado. Nas gravuras cromáticas o caminhar é outro: nosso olhar vai e vem - a relação entre superfície e profundidade apresenta-se tensa e singular, em cada obra. A resultante não se pauta mais tanto em equivalências com o real.

Poderíamos pensar essa cor como elemento desabridamente emocional, que adentra um cenário onde reina grande controle de emoções.  Ela pode ser única, ou então dual – o tom quente geralmente situado nas áreas de luz e o frio, nas de sombra. Em alguns poucos casos, podem surgir novas tonalidades. Em todos esses trabalhos, sentimos a energia transformadora irrefreável que a abordagem cromática traz consigo. A força e beleza desse processo advém da própria existência do controle a ser rompido. Um rompimento que não destrói, não demole estruturas, antes ressignifica a imagem. 

A gravura monocromática possui um caráter mais afeito à crônica visual - crônica dos lugares e não-lugares paulistanos. Mas isso não implica que ela resvale pela descrição prosaica, muito pelo contrário. A composição rigorosa  confere a essas imagens serena grandeza. O mistério apresenta-se aqui silencioso, latente. Com ecos desse silêncio Camilo constrói sua interpretação do cotidiano – uma visão da alma paulistana com forte  acento metafísico.

A  gravura cromática perde um pouco esse caráter de crônica. O cenário já não possui a mesma inocência topográfica. A metafísica ganha um componente por vezes dramático. Cada avenida, cada estação de metrô, afirma seus mistérios em voz muito afinada. Um fluxo de massas nervosas nos espreita, por trás dos edifícios, sem, contudo, dissolver a solidez das coisas. O dinamismo aqui não é contraditório com peso e densidade - antes, potencializa essas qualidades, alçando-as a um novo patamar. O perene e o monumental rondam a São Paulo de Camilo Thomé.


Hélio Schonmann

(Texto publicado no livro SÃO PAULO/ XILOGRAVURAS  - UMA CRÔNICA DA CIDADE, de Camilo Thomé)

 

 

 

Camilo Thomé - artista brasileiro (1941) - xilogravuras