A COR DANÇA na Passagem da Consolação: a arte de Lúcia Neto

Hélio Schonmann

A exposição A COR DANÇA nos introduz ao universo pictórico de Lúcia Neto, onde realidade e fantasia se entrelaçam, filtradas por uma visão de mundo extremamente pessoal. Em suas paisagens paulistanas encontramos claro exemplo dessa abordagem: nelas, cada edifício como que busca seu “lugar no mundo”, movimentando-se e depois recuando diante do prédio vizinho, vacilando para um lado ou outro, até finalmente apoiar-se na parede oposta – que também está fora de prumo e depende de sustentação para não cair. Fantasia e alegoria aqui se associam, com extrema naturalidade, à crônica do cotidiano, em cenas povoadas de sugestiva fauna urbana.

A poética de Lúcia define-se num jogo permanente de opostos, o que se reflete na própria linguagem: por um lado deparamo-nos com a utilização descritiva da linha na reafirmação da forma; por outro, é inegável a característica atmosférica de suas composições – resultado da construção cromática do espaço, com farto uso de fusões e sobreposições.

A faceta descritiva de seu trabalho viabiliza abordagens temáticas singulares. Destaco aqui duas delas: a série que focaliza o ofício do pintor, terreno fértil para a elaboração de ricas invenções formais – sugeridas pelo espaço da tela-dentro-da-tela – remete o observador a uma reflexão sobre a natureza e o sentido do fazer artístico; já outras cenas, em tons claramente autobiográficos, põem à prova a capacidade da artista de elaborar conteúdos narrativos emocionalmente intensos, sem perder de vista a pesquisa da linguagem.

Em suas últimas criações, um personagem vem dominando o universo imaginativo de Lúcia: a bailarina. Apareceu gradualmente, para, aos poucos, instalar-se como elemento único e recorrente: pequenos seres que vão se movimentando diante de nós, em seqüências rítmicas. Soam quase barrocos esses trabalhos mais recentes, na sua opção pela linha sinuosa, tantas vezes espiralada. As figurinhas dançantes apresentam sempre um quê de desengonçado, fazendo-nos pensar numa versão contemporânea da boneca Emília, de Monteiro Lobato, com sua malícia tão brasileira. É de se notar a curiosa ambigüidade entre o tom feérico da composição e o profundo lirismo da pintura – entre malícia e ingenuidade – que muito enriquece estas cenas. Lúcia cria assim um festivo ritual, onde nosso olhar mergulha, cativo – celebrando, em rodopios contagiantes, o prazer da criação, da fruição e da vida.
(texto de apresentação da exposição A COR DANÇA)